21.11.08

O porco de prata

atordoado, já não conseguia mais pensar, tudo ao meu redor era nebuloso. Permanecia estático, esperando que uma enxurrada limpasse toda lama que atravancava as portas que eu precisava abrir, mesmo que sem nenhum motivo especial. Arejar, arejar.

Seriam anos de estudo, especialização em algum segmento qualquer. E isso tudo para quê? Para ser escravo de quem? Não, nada disso! Se for pra ser escravo, que seja de mim, do meu tédio. Poderia virar escritor, e nas horas vagas me entreter com minhas próprias lamúrias, causadoras do meu enfado. Fora isso, alegrar um bando de paspalhos falando sobre banalidades cotidianas, acrescentar um pouco de suas tentativas falhas de fingir algo que não são num fim de semana ensolarado. Sim, Senhor, um escritor do populacho. Poderia arrancar-lhes um sorriso, mesmo que amarelo. Fazer arder-lhes os olhos até que escorra uma lágrima escondida. Até mesmo provocar asco e incitar o vômito. Pode-se tudo, basta atacar o lugar certo. E as pessoas procuram isso, elas querem todas essas sensações. "Quanto mais grotesco melhor!"- me dirão. Para eles, que não conseguem praticar nada em suas vidas, uma boa frase basta. Precisam de algo que lhes soe revelador, algo que lhes desperte alguma sensação estúpida. Escritor... parecia uma boa solução. Tudo, desde que não seja algo que agrade algum magnata que anseia encontrar um lugar para mim em seu negócio aspirante a monopólio. Isso seria indecoroso.

Quase todas caras que você vê na rua não conseguem pensar, assim como estava eu, dias atrás. Precisam de alguém que pense por eles. Eu, particularmente, não gosto de recorrer a ninguém. Prefiro maltratar meu pensamento com a raiva do pensar que não penso. Essa raiva maltrata, te faz parecer um idiota para você mesmo, alguém que não sabe nem definir as próprias necessidades. De repente um pensamento surge, e traz com ele toda vergonha de um atraso, um longo atraso de anos, quase imperdoável. Parece até chicotear a

Merda, me bateu um enjôo. Estou enjoado desde que acordei. Não quero vomitar os pedaços da linguiça que requentei com arroz para a janta. Não durmo bem fazem meses e, por sinal, anotei o último sonho que tive, e a data. Fazem trinta e sete longos dias cinzentos. Não aguento mais os invernos londrinos. Prometi a mim mesmo que será o último ano que passo nesse lugar.
Estou tentando me lembrar do que se tratava o tal sonho. Um on the rocks vai facilitar minha memória, considerando que o dito bloco onde anotei jaz perdido debaixo da montoeira de relatórios que emporcalham a pocilga onde moro. Sim, lembro agora. O sonho era sobre relatórios. Eu não aguento mais relatórios, nem Londres, nem o frio. Estou com saudade de Emily e do meu pequeno desconhecido Mike.

Era isso. O que eu relatava no sonho não era a prestação dos serviços de manutenção telefônica do Camden. Eu listava as vezes em que me arrependi da minha decisão de trocar a grande paixão de minha adolescência por um sonho egoísta longe de Darlinghust, eu ficaria rico em seis meses! Treze meses depois fiquei sabendo da gravidez do meu anjo mau. Mas a grande e definitiva dor veio quando ela me mandou o primeiro desenho que meu filho fez para mim. Ele tem três anos agora, gosta de aviões e de um super herói japonês impronunciável para mim.

Merda, preciso de mais uma garrafa, estou enjoado mas não vou vomitar. Preciso provocar a dor ao máximo para ver se a reverto. Meu castigo é uma ordem, senhor. Seu perdão é minha súpli-

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21.10.08

De: Sete Contos sobre a Paixão: 4. A superintendência do amo

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-ceramente era esse o questionamento que ele mantinha na cabeça. Uma visão reducionista, bobinha... simplificação grosseira das diferenças infinitas que havia entre as duas, e que certamente não estavam ao alcance da sua abstração.

Solange tinha vocação para cachorrinha. Era obediente e prendada. Do tipo que obedece no grito, que pode ser mandada longe e depois chamada de volta como se nada tivesse acontecido, com um sorriso no rosto. Para ele toda mulher com vocação para cachorrinha não tem muita coisa de interessante nos miolos, e por isso não tem nenhuma outra vocação. Não oferece surpresas. Adora rotina, oferece uma paz infinita, com todas as mordomias dentro desse insuportável ciclo repetitivo.

Já Marina... essa era felina, aquele tipo que sempre lhe escapa dos dedos. Nada era óbvío e constante com ela exceto a certeza de que, mesmo quando abraçado a ela, ouvindo seu ronronar sereno em sua cama, ele nunca a possuiria de verdade. Ela sempre seria um desafio para sua paz. Ele teria de abrir mão da calma. Riscaria essas duas palavras do seu dicionário, assim como o verbete tédio.

Nesse momento ele observava-as como um catálogo. Não deixava-se desviar para nenhum dos lados. Elas apenas instigavam sua poderosa imaginação e, feito como refém do seu construto, podia imaginar com tamanha precisão de detalhes o tipo de vida que teria com cada uma das moças. Como seriam seus filhos, a casa, as refeições, suas amantes fora do casamento, e fundamentalmente se eles seriam felizes.
Era seu grande divertimento. Pudera, ele sempre fora melhor com probabilidades do que com a consumação dos fatos. Ele era um artista.















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15.5.08

Contos do universo paralelo

entanto, não passava de mera suposição.
   Era tão calmo e observador que não tardou muito para que começasse a prever o futuro. Previa tudo com espantosa exatidão. Começou logo na infância, acertando em cheio quantos peixes seu pai traria da pesca. Depois anunciou também a chegada do forasteiro que apresentaria ao povoado a lanterna. Assustada e de comportamento retrógrado, sua vizinha o acusou de bruxaria e buscava apoio da vizinhança para queima-lo na fogueira, mas ninguém deu ouvidos à velha.
   Aos que perguntavam a ele qual era a graça de viver sabendo tudo que aconteceria, Juvêncio respondia que tinha prazer em ver os rostos de espanto daqueles que lhe davam crédito, mas, principalmente, a expressão de pavor dos que lhe duvidavam. Tanto era verdade que semanas depois da concretização de sua maior profecia, quando ninguém mais ousava duvidar de Juvêncio, ele faleceu por não mais encontrar o pavor nos rostos que alimentavam seu calor pela vida.
   Era uma manhã tímida pela neblina, quando Juvêncio disse em tom sereno que a Terra já estava tonta de rodar em torno do seu próprio eixo imaginário e, além disso, cansada demais para girar em torno do sol, motivos pela qual resolveria ficar imóvel. O mar, cansado de ir e vir, seguiria o exemplo e somente dançaria conforme a musicalidade do vento. Descobriria-se daí o masoquismo das pedras, que reclamariam da falta de violência do mar, impedindo que elas chorassem areia. Ignorando tudo isso, a lua permaneceria dando seus passeios. Não por obediência, tampouco por desobediência, mas por pura diversão.
   Cerca de meio ano após, as risadas daquele dia foram substituídas por tamanho poder de incredulidade que todos que tinham conhecimento da profecia também ficaram imóveis por pelo menos três horas, tamanho foi o espanto e pavor. Juvêncio regozijou como nunca antes fizera na vida. Diferente de todos estava Catarina, que sempre acreditou no seu tio e ficou feliz ao ver que a Terra parou justamente na hora do pôr-do-sol.
   Após sua morte alguns vizinhos ainda lembravam da velha que queria pôr-lo na fogueira, e hoje davam razão, pois acreditavam não ter sido uma premonição, mas sim uma maldição de Juvêncio para o universo.
   Entretanto, a decisão da Terra que parecia permanente foi desfeita quando cansou de agüentar todo o peso das pessoas de um só lado, por terem migrado todas em busca do sol. A relação da Terra e Sol nunca mais foi a mesma. E agora era a lua que, de vez em quando, parava entre os dois e os eclipses eram constantes. Tudo para evitar confrontos. Já o mar permanecia em repouso, namorando com o vento, para lamento das pedras, pescadores e de todos aqueles que praticavam

4.5.08

A dor

tece que nessas horas fico extremamente angustiado, e nesse momento parece que o véu da ilusão desaba diante do meu ser e me vejo frágil, incapaz de ir contra as ondas que me impulsionam, e completamente só. Sinto meu comportamento destrutivo e enxergo apenas desgraça, egoísmo, medo e veneno nos meus atos, no meu dia a dia. Um complexo ser de passado, presente e futuro vagando em função de superficialidades, afundando minha saúde por pouca coisa. E é isso mestre. Nesse momento não vejo luz no fim do túnel, não vejo Buda, não vejo Deus. Vejo um cadáver putrefando-se, olho a janela e vejo um vasto universo que se estende por inimagináveis planetas e estrelas. E é apenas EU, e eu passo, eu me encaminho pra noite sem estrelas.

- É exatamente esse o ponto, meu caro aluno. Você se sente refém por que realmente acredita que tudo isso existe. Nesse exato momento você vê tudo como uma concretude, o mundo como ele realmente é, como se realmente algo fosse, como se aqueles instantes do mais insuportável desespero fossem a vida como tal, como é. Mas não esqueça que ela é essa dança, ela apenas é. A natureza apenas flui, não há realmente você. Você tem medo da não existência, mas no fundo não se da conta que é sendo você mesmo que você inexiste de fato. Deixe essa mente relaxar, esse corpo parar de penar, de reagir a tantos estímulos, a tanto EU, tanta demanda concentrada em você... tanta tensão. Você nunca vai compreender nada. Mas a compreensão existe no ser que somos quando deixamos de achar que somos alguma coisa de fato.

O jovem ocidental vomitou mais uma vez. Vomitaria milhares de vezes e o mestre seguiria ali, e muitas vidas se passariam até que ele realmente se purificasse. O mestre sabia disso e sorria. Sabia que naquele momento o praticante voltava a pisar na estrada do ensinamento profundo, e que essa dor desaguava para devolver-lhe paz.

28.3.08

Acorrentado pelo vento

e seu canivete. Eram, sem dúvida, os três objetos que ele mais dava importância na sua vida. O canivete em especial. Havia ganho ele no seu aniversário de 12 anos. Seu pai sempre achou que um homem deveria portar consigo um canivete. Nada mais adequado para Roberto, que entraria para os escoteiros não tardaria muito, a pedidos do pai. "Filho meu tem que aprender a se virar!" dizia seu pai. Roberto não achou a idéia muito atrativa na época, mas hoje Roberto lembra daquele tempo com grande saudosismo. Se hoje tivesse a oportunidade, agradeceria seu pai pessoalmente.
   O velho Francisco sempre fora um tanto rabugento, mas sempre tinha a melhor das intenções. Apesar de saber que disso o inferno estava cheio, persistia com suas impertinências. Realmente não o fazia por mal. Tudo o que fazia era tentando conceder ao filho o que seu pai havia deixado em branco. Esquecia que as pessoas tinham opiniões distintas, que os desejos do pequeno Roberto não eram os mesmo do pequeno Francisco. "O que as crianças sabem, afinal?" pensava hoje o velho. Diferente dos seus pensamentos da infância, quando pensava: "Que esses adultos pensam que sabem?".
  E apesar de tudo, Roberto nunca se queixava! Lamentava, fazia uma cara amarrada, mas nunca se opôs aos pedidos do pai. Era por medo. Seu pai até poderia perceber, mas se fazia de rogado. Esperava que o tempo ensinasse Roberto nessas ocasiões, o que, eventualmente, acontecia. Somente uma vez que Seu Chico, como era conhecido na vizinhança, voltou atrás em uma de suas imposições para com Roberto. Ao ver que o filho parecia   

21.3.08

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que não poderia avistá-la mais, os campos da propriedade vizinha eram visíveis quando resolveu parar e voltar para contar ao coronel Lucrécio seu retumbante fracasso.

-- Nhazinha foi embora – disse esbaforido e completou – de mala e tudo Coronel. Corri mas num pude evitar.

O coronel estava estupefato, colérico e ensandecido. Olegário olhava-lhe assustado, evitando os olhos, estava porém conformado com a morte certa que segue a vida dos peões incompetentes e, no seu caso, traidores. Era um homem nobre acima de tudo. Fê-lo por amor.

4.

Anita acordou assustada, segundos antes do sacristão agitar os sinos da igreja. Os olhos vermelhos do demônio ainda estavam incrustados na sua mente quando desceu para buscar lenha. Não era de ter premonições, mas quando elas vinham, podia acreditar que algo terrível estava por vir. Buscou o terço e rezou fervorosamente por proteção aos seus doze filhos, e orou pelo falecido marido, Inácio. No seu sonho pode ver que não haveria piedade e uma alma bondosa perderia a vida em sacrifício.

-- Sua benção minha mãe.

-- Bença, filho meu. Mimosa deu leite?

-- Não, só Preta.

-- Seu irmão está com problema João Carlos, ore por ele filho. Quando mimosa não da leite, é por que pressente coisa ruim com Olegário, ai meu deus do céu, protege meu filho pelo amor de menino Jesus – Caiu nos braços crédulos do filho do meio e desatou a chorar, não havia mais duvidas. Uma rajada de vento se deu, e longe dali Olegário viu o cano do revolver aproximar-se da sua testa. Orou. Morria por amor.

Dorotéia corria e derramava lagrimas de desespero, de negação, e de medo. Sabia que muitas desgraças sucederiam sua fuga, e corria cada vez mais depressa, o sitio do barão era

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20.3.08

Projeto aprovado

havia três horas; no entanto, ninguém parecia se importar com o paradeiro dela. Fabrício não agiria de forma diferente, sabia que isso era comum. Sendo assim, caminhou durante uns quinze minutos até chegar a altura do bar Astralopitecus, onde seus amigos costumavam se reunir nos fins de noite. Dessa vez ele foi o primeiro a chegar. Ele sabia disso logo que resolveu ir para o bar, mas mesmo assim tinha alguma esperança de já encontrar alguém lá. Precisava contar o que havia lhe acontecido naquele dia.
- Ei garçom, manda uma cerveja!

Bebeu compulsivamente enquanto esperava. Todas as cenas daquela noite se agitavam sua cabeça, estava a ponto de conversar com o garçom. Nem sabia o nome dele, apesar de ser cliente do bar havia quase três anos. Fábricio nunca foi de criar amizades facilmente. Quando terminou o segundo copo viu Angélica se aproximar. Fez um aceno e lhe escapou um singelo sorriso. Ela vinha trajada daquela sua calça marrom, já um tanto desbotada. Calçava os sapatos que pegara da mãe, e os vinha rastejando, fazendo um som que lembrava o amolar de uma faca.
- Oi Fabrício, chegou cedo hoje, ein?
Fabrício adorava a voz de Angélica. O levava para um mundo paralelo nos primeiros instantes. Às vezes ficava preso lá, e abstraia tudo o mais que não fosse sua voz.
- Pois é, eu tava meio sem ter o que fazer... queria conversar com alguém e passei aí.
- É, tu tá bem com cara de quem quer conversar.
- Isso foi ironia? - falou de imediato. Fabrício era de poucas palavras, então aquilo lhe soou como uma brincadeira sem graça.
- Não, to falando sério!
- Ah é que sei lá, tu sabe... costumo ser quieto.
- Sei? Não sei de nada! - disse revirando a bolsa atrás de alguma coisa.
- Bom, mas deixa pra lá. Lembra aquele projeto que te comentei?
Angélica havia tirado um pequeno espelho da bolsa e balançou a cabeça concordando.
- Pois é! Consegui... o pessoal da editora gostou.
- Sério? A página 53? Poxa, que legal Fabrício!
Seu rosto começava a ficar vermelho. Se sentia um estúpido sempre que isso acontecia, e isso não era raro. E não era exatamente sobre isso que queria conversar, mas também não queria ser tão direto. Então resolveu detalhar melhor aaa